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RECOMENDAÇÃO Nº 013, DE 24 DE MAIO DE 2021

Recomendação favorável ao licenciamento compulsório para todas as tecnologias disponíveis para atender os interesses sociais, diante da pandemia da Covid-19.

 

O Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pelo Regimento Interno do CNS e garantidas pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990; pela Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990; pela Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012; pelo Decreto nº 5.839, de 11 de julho de 2006; cumprindo as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da legislação brasileira correlata; e

Considerando o Art. 1º da Constituição Federal de 1988, que prevê como fundamentos do Estado, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana;

Considerando o Art. 196 da Constituição Federal, que define a “saúde como direito de todos e dever do Estado”, com a “redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”;

Considerando estas premissas basilares: 1º, o medicamento deve ser um insumo garantidor do direito, portanto fundamental para qualquer nação que tem que assegurar a saúde de seu povo e, 2º, que a propriedade intelectual deve ser um instrumento para o desenvolvimento da sociedade e da soberania dos povos;

Considerando que a Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/1996 prevê em seu Art. 71, acerca da Licença Compulsória que, “Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular”;

Considerando o Decreto nº 4.830, de 04 de setembro de 2003, que também dispõe sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o Art. 71 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996;

Considerando o Decreto nº 9.289, de 21 de fevereiro de 2018, decorrente de negociações e acordos na OMC, acatando o Protocolo de Emenda ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio que foi adotado pela OMC, em 6 de dezembro de 2005, com  abordagem de produtos farmacêuticos e seus ingredientes ativos, bem com a distinção entre “membro importador elegível”, como País-Membro de menor desenvolvimento, e “membro exportador”, significando uma possibilidade de um  País-Membro  utilizar o sistema para produzir ativos e exportá-los para um membro importador elegível;

Considerando que o Decreto nº 9.289/2018 prevê ainda que “na medida necessária para permitir que um produto farmacêutico fabricado ou importado sob uma licença compulsória naquele Membro seja exportado para os mercados daqueles países em desenvolvimento, ou de menor desenvolvimento relativo, que sejam parte do acordo comercial regional e que igualmente enfrentam o problema de saúde em questão”, como as vigentes, mas não restritas, diante dos estados de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, e de pandemia;

Considerando as medidas extraordinária e temporária, publicadas pela ANVISA, na RDC nº 484 de 19 de março de 2021, para a autorização de fabricação, em caráter emergencial, sob regime de notificação perante a ANVISA, de medicamentos hospitalares usados para manutenção da vida de pacientes no enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2);

Considerando a Recomendação nº 054 do Conselho Nacional de Saúde, de 20 de agosto de 2020, que recomenda orientações ao Ministério da Saúde e órgãos de controle, bem como ações para aquisição de medicamentos para o enfrentamento à pandemia da Covid-19;

Considerando a Recomendação nº 067/2020, que requer a adoção de medidas para a garantia do acesso à vacinação enquanto estratégia de enfrentamento à pandemia da Covid-19, que pede ao governo que garanta a aplicação do disposto na legislação brasileira de Propriedade Industrial e outros dispositivos legais ou acordados, no que se aplica o abuso do poder econômico e a possibilidade de efetivação de Licença Compulsória para a produção de vacinas e outros itens necessários para atender a população brasileira;

Considerando a Moção de Apoio nº 03 de 07 de abril de 2020 do CNS favorável ao Projeto de Lei nº 1462/2020, que trata de licença compulsória nos casos de emergência nacional decorrentes de declaração de emergência de saúde pública de importância nacional ou de importância internacional;

Considerando que o contexto pandêmico e emergencial requer a proposição de ações de proteção das populações, a identificação das fragilidades individuais e coletivas, o asseguramento da equidade na promoção do cuidado, a redução das ameaças à saúde em sua plenitude conceitual e o tratamento e recuperação aos adoecidos, transmitindo esperança e valorizando a vida para todos membros da sociedade;

Considerando o aprofundamento do debate sobre a licença compulsória para todos os insumos, produtos e tecnologia necessária para atender as reais necessidades das pessoas e que nesta crise de saúde global, e de circunstâncias extremas da pandemia da Covid-19, exigem-se medidas extremas, objetivando ações que possam ter ampla cobertura, utilizando a mais efetiva e segura vacinação visando a imunização da população;

Considerando a experiência brasileira de 2007 que decretou por interesse público a licença compulsória do antirretroviral Efavirenz (Decreto nº 6.108, de 04/05/2007), garantindo a fabricação nacional do antirretroviral de forma segura, de qualidade e a baixo custo, assegurando as ações do Programa Nacional de DST/Aids e o controle da epidemia de HIV/AIDS;

Considerando a situação agravada por diferenças no acesso a vacinação para as populações vulneráveis, como as pessoas com comorbidades que ainda aguardam a vez para a imunização, e para as populações vulnerabilizadas socialmente, sem as devidas condições mínimas de moradia, alimentação e emprego, que aguardam, sem perspectivas para a volta à normalidade da vida, ou mesmo a redução da vida miserável provocada;

Considerando que a suspensão dos direitos à propriedade intelectual de vacinas, medicamentos e todas as tecnologias para a Covid-19 contribuirá significativamente para o acesso aos mesmos, amplamente distribuídas igualitariamente, sendo fundamental para alcançar a superação destas terríveis crises social, sanitária e econômica;

Considerando que as suspensões poderão facilitar a reversão do ritmo extremamente lento da vacinação, tendo em vista que esta começou tardiamente no Brasil, situação que traz mais riscos para o surgimento de outras variantes, mais infecciosas, e que poderão diminuir a eficácia das atuais vacinas;

Considerando que os produtos relacionados a uma pandemia devem ser considerados automaticamente licenciados, não podendo ser sujeitas a monopólio nem especulação com preços elevados e inacessíveis para o SUS;

Considerando que, após a proposta apresentada desde 2/10/2020 no Conselho de TRIPS da OMC por Índia e África do Sul para a suspensão temporária da proteção patentária para produtos relacionados à pandemia, essa proposta recebeu o apoio de dois terços dos países membros da OMC e mais recentemente o anúncio de vários países como  Estados Unidos, China, entre outros, que já anunciaram apoio a flexibilização das regras de patentes para vacinas contra a Covid-19;

Considerando que a flexibilização das regras para vacinas contra Covid-19 pode expandir o fornecimento global destes insumos e reduzir a lacuna de vacinação entre países ricos e pobres;

Considerando a necessidade da garantia do acesso a vacinas, medicamentos e equipamentos, o que pressupõe: I - liderança governamental responsável, na defesa das vidas e com a garantia de um financiamento justo, sustentável e transparente do sistema público de saúde e da ciência; II – atuação efetiva do poder legislativo para que os interesses públicos sejam efetivamente atendidos considerando-se, em especial, este momento de grave situação de saúde pública; e III – que se observe a necessidade de escuta permanente do controle social do SUS;

Considerando o Parecer Técnico 030/2021 do CNS que dispõe sobre a licença compulsória para toda e qualquer tecnologia para atender os interesses sociais, diante da pandemia da Covid-19, a ser distribuído massivamente entre parlamentares, governantes, ministros e conselhos de saúde; e

Considerando as atribuições conferidas ao Presidente do Conselho Nacional de Saúde pela Resolução CNS nº 407, de 12 de setembro de 2008, Art.13, Inciso VI, que lhe possibilita decidir, ad referendum, acerca de assuntos emergenciais, quando houver impossibilidade de consulta ao Plenário, submetendo o seu ato à deliberação do Pleno em reunião subsequente.

 

Recomenda ad referendum do Pleno do Conselho Nacional de Saúde

Ao Supremo Tribunal Federal:

Que ao apreciar, em plenário, o tema da licença compulsória, possa manter posição no sentido de atender as necessidades sociais e a favor das vidas, em especial neste momento da pandemia da Covid-19, em termos semelhantes à recente Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.529, em 29 de abril e 05 de maio de 2021.

Ao Governo Federal: 

I - Que decrete emergência nacional e interesse público, determinando a concessão da licença compulsória, com transferência de tecnologia para o laboratório estatal ou privado competente, sob gerenciamento do SUS. Nesses termos, a licença deverá ser por tempo indeterminado, enquanto durar a emergência nacional, acordando pagamento de percentual internacional (em torno de 3%) sobre as exportações do produto. Deste modo, mantém-se respeitados os acordos internacionais já firmados;

II - Que apoie na OMC a iniciativa da suspensão temporária (“waiver”, documento IP/C/W/669 na OMC), alinhando assim a parceria com os países em desenvolvimento e os BRICS; e

III - Aprovação de Linhas de crédito especial para a produção de fármacos, vacinas e outros insumos essenciais para o enfrentamento da Pandemia da Covid19; fundamental para retornada da Política do Complexo Industrial da Saúde, visto que as vacinas são apenas um dos ítens; todos os demais medicamentos utilizados no tratamento devem ter acesso às IFA 's e aos excipientes, bem como instrumentos e equipamentos necessários para o desenvolvimento da produção.

À Câmara dos Deputados:

I - Aprovação imediata do Projeto de Lei nº 1462/2020 da Câmara dos Deputados e do Projeto de Lei (PL) nº 12/2021 do Senado Federal, este último nos termos do Parecer do Relator, em 28/04/2021, e aprovado no Plenário em 29/04/2021, que dispõem sobre a concessão de licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração de patentes;

II - Ampliar o debate para medicamentos sedativos, neurobloqueadores e antivirais de eficácia comprovada pela Anvisa, entre outros, que possam trazer suporte às pessoas acometidas pela Covid-19;

III - Revisão do Orçamento da União de 2021, garantindo as verbas emergenciais para enfrentamento à Pandemia da Covid19 e a manutenção do auxílio emergencial;

IV - Aprovação de linhas de crédito especial para a produção de fármacos, vacinas e outros insumos essenciais para o enfrentamento da pandemia da Covid19, matéria fundamental para a retomada da Política do Complexo Industrial da Saúde, visto que as vacinas são apenas um dos itens. Nesse sentido, todos os demais medicamentos utilizados no tratamento devem ter acesso às IFA's e aos excipientes, bem como instrumentos e equipamentos necessários para o desenvolvimento da produção.

Aos Conselhos de Saúde: 

Estímulo constante a movimentos ativos em favor da soberania nacional para a área da saúde, de maneira tal que possamos garantir ciência e tecnologia capaz de fazer frente ao contexto de pandemia que se manifesta e se impõe, e mais, às necessidades que se apresentam para o desenvolvimento de produtos para as doenças que afligem a sociedade brasileira, especialmente nesse campo das patentes, incluindo-se, entre outras, aquelas destinadas aos tratamentos oncológicos e de doenças raras.

 

FERNANDO ZASSO PIGATTO
Presidente do Conselho Nacional de Saúde

 

Parecer Técnico CNS nº 030/2021

 

Dispõe sobre a necessidade de reconhecimento da licença compulsória para todas as tecnologias disponíveis com vistas a atender aos interesses sociais, diante da pandemia da Covid-19.

1.  Contextualização/Atual Cenário

No século XV, a igreja e as monarquias europeias estabeleceram os fundamentos jurídicos e morais para a colonização e extermínio de povos não-europeus na América através de cartas, patentes ou bulas papais. Quinhentos anos depois de Colombo uma versão secular desse projeto de colonização tem continuidade através de patentes e direitos de propriedade intelectual[1].

O contexto pandêmico e emergencial requer ações de proteção das populações, identificação das fragilidades individuais e coletivas, garantia da equidade na promoção do cuidado, redução das ameaças à saúde em sua plenitude conceitual, tratamento e recuperação aos adoecidos, transmitindo esperança e valorizando a vida para todos membros da sociedade, o que perpassa pelo aprofundamento do debate sobre a Licença Compulsória para todos os insumos, produtos e tecnologia necessária para atender as reais necessidades das pessoas.

Nesta crise de saúde global e de circunstâncias extremas da pandemia da Covid-19, exigem-se medidas que lhe sejam equivalentes, objetivando ações que possam ter ampla cobertura, utilizando a mais efetiva e segura vacinação com vistas à imunização da população.

Em todo o mundo, temos assistido a diferentes formas de proteção da população. Cada país tem uma estratégia. Desenvolvem-se pesquisas com medicamentos e vacinas. Em paralelo a isso, o vírus também usa suas estratégias biológicas de permanência, que se associam a decisões políticas. Nestas, as ações não farmacológicas são ignoradas e não há investimentos em compras de vacinas, assistimos ao surgimento de variantes do vírus, mais contagiosas e mais letais.

Neste contexto, o Brasil ganha destaque como incubador de novas variantes do vírus Sars-CoV-2. Não podemos acreditar na normalidade da submissão científica e tecnológica e na permanência da dependência.

Nestas questões preliminares, destacamos que partimos do entendimento oriundo das seguintes premissas basilares: primeiro, o medicamento deve ser um insumo garantidor do direito à saúde, portanto, fundamental para qualquer nação que tem que garantir a saúde de seu povo; e, segundo, que a propriedade intelectual deve ser um instrumento para o desenvolvimento da sociedade e da soberania dos povos.

Para além do Art. 196 da Constituição de 1988, que traz a  “saúde como direito de todos e dever do Estado”, com a  “redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, a Carta Magna brasileira apresenta em seu Art. 1º, como fundamentos do Estado, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

A década de 1990 foi marcada pelo intenso movimento de várias entidades sindicais e dos movimentos estudantis contra a aprovação no Congresso Nacional do primeiro anteprojeto da lei de patentes. A redação da proposta foi encomendada à Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), em outubro de 1989, por Marcilio Marques Moreira, então embaixador brasileiro em Washington e Ministro da Fazenda.

O movimento constituiu-se como Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento. Foram realizados debates em todo o país, que incluiu visitas em assembleias legislativas, e câmaras municipais, debatendo a Licença Compulsória. A proposta do governo federal não só avançava no patenteamento de produtos e processos farmacêuticos, como também sobre outros itens que eram de interesse da sociedade.

O Brasil, em decorrência da participação como País-Membro na Organização Mundial do Comércio (OMC), e dos acordos realizados, em especial do Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), promulgou a Lei nº 9.279, 14 de maio de 1996, que trata dos direitos e obrigações relativas à propriedade industrial/intelectual.

Este instrumento legal trata da concessão de patentes e, dentre outros temas, do instrumento de Licença Compulsória. Sem diferenciar brinquedos, pneus e outros produtos industrializados de medicamentos, insumo este essencial para salvar vidas.

Interessante que as patentes de medicamentos revelam as contradições internas ao próprio Estado: o mesmo governo que encampou a Lei de Propriedade Industrial, promulgou a “Lei dos Genéricos” (Lei nº 9.787, de 10/02/1999), abrindo o mercado nacional para fármacos com patentes internacionalmente expiradas.

Nesse mesmo período, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) iniciou os debates sobre a importância da Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Contudo, foi somente no ano de 2004, que foi aprovada a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Quando houve uma maior articulação entre as ações de fomento científico-tecnológico e a política de saúde.

Em 2003 surge o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual. Formado por organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas o Grupo está vinculado à Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP). Essa ação conjunta desenvolve atividades com foco na diminuição dos impactos negativos das patentes sobre políticas públicas de saúde, buscando alternativas para minimizar o impacto das patentes farmacêuticas no acesso aos medicamentos essenciais.

Em 2004/2005, o alto custo de medicamentos antivirais colocou em xeque o Programa Nacional DST/AIDS, em meio à epidemia. O antirretroviral efavirenz, de elevado preço, era o medicamento mais utilizado para o tratamento do HIV/AIDS. O laboratório detentor de sua patente, Merck Sharp & Dohme, era inflexível em negociar e rever preços para a aquisição pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que comprometia a efetividade do programa de HIV/AIDS.

Essa situação levou o pleno do Conselho Nacional de Saúde a aprovar a Resolução CNS nº 352/2005, requerendo o licenciamento compulsório dos antirretrovirais efavirenz, lopinavir e tenofovir. A Resolução contribuiu para a pressão nas negociações e, em maio de 2007, o Governo Federal, por meio do Decreto nº 6.108/2007, concedeu, por interesse público, a Licença Compulsória do antirretroviral efavirenz, garantindo a fabricação nacional do antirretroviral de forma segura, de qualidade e a baixo custo.

Em 2017, numa nova quebra de braço com a indústria farmacêutica, o protagonista foi o medicamento sofosbuvir do laboratório Gilead. E mais uma vez o pleno do CNS aprovou a Recomendação n० 07/2017 que requereu do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) a priorização da análise de pedido de patente do medicamento sofosbuvir.

No resguardo dos interesses de Saúde Pública do Brasil e considerando os estudos de equivalência farmacêutica e de bioequivalência do medicamento realizados no Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/ Fiocruz), entre outras recomendações, o CNS recomendou que considerasse como relevantes os subsídios ao exame de patente apresentados por instituições públicas, representações da sociedade civil e por entes do setor produtivo privado nacional.

No contexto da pandemia da Covid-19, o pleno do CNS já se manifestou por diversas vezes, como por exemplo: sendo favorável ao Projeto de Lei nº 1462/2020, que trata de Licença Compulsória nos casos de emergência nacional decorrentes de declaração de emergência de saúde pública de importância nacional ou de importância internacional; aprovando a Recomendação nº 067/2020, que, dentre os requerimentos de adoção de medidas para a garantia do acesso à vacinação enquanto estratégia de enfrentamento à pandemia da Covid-19, recomendou ao Ministério da Saúde a garantia da aplicação do disposto na legislação brasileira de Propriedade Industrial e outros dispositivos legais ou acordados, no que se aplica o abuso do poder econômico e a possibilidade de efetivação de Licença Compulsória para a produção de vacinas e outros itens necessários para atender a população brasileira.

Frente a essa situação insustentável, é imperativo exigir atitudes imediatas e resolutivas em favor das vidas dos brasileiros e brasileiras. Todos os esforços precisam ser coletivos em um comando único, com participação ativa dos entes envolvidos e a atitude concreta por parte do governo federal, rumo ao cumprimento do seu dever constitucional de garantir saúde com qualidade ao povo brasileiro.

Afirmamos ainda a necessidade não apenas da Licença Compulsória de patentes das vacinas para o combate ao vírus da Covid-19, mas de ampliar o debate para medicamentos sedativos e neurobloqueadores, e antivirais de eficácia comprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre outros que possam trazer suporte às pessoas acometidas pela Covid-19.

Solicitamos dos gestores atenção às necessidades das pessoas, à defesa da vida da população, às mais de 420 mil famílias enlutadas; que revejam o orçamento aprovado para 2021. Um orçamento com recursos insuficientes para enfrentar a pandemia e as necessidades cotidianas do SUS e da população.

O Brasil foi abandonado pelos que optaram por apostar no ajuste fiscal, na manutenção da Emenda Constitucional nº 95/2016, na redução do auxílio emergencial e no fim da verba emergencial para enfrentamento da Covid-19 em 2021. Mais da metade do orçamento da União está bloqueado para a sociedade, tendo em vista que essa grande parcela dos recursos nacionais está reservada para dar conta do pagamento dos juros e encargos da dívida pública.

2.  Embasamentos legais e técnicos

Importante salientar que a famosa e conhecida "quebra de patentes" não existe. Existe e é legal a "Licença Compulsória", que estabelece os artigos 68, 73, Parágrafo 6; artigos 70 e 71 da Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial).

Esta citada lei traz, no seu Art. 71, a figura da Licença Compulsória:

Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

A fim de respeitar os acordos internacionais firmados, o Brasil deve decretar emergência nacional e interesse público, determinando a concessão da Licença Compulsória, com transferência de tecnologia para o laboratório público ou privado competente, sob gerenciamento do SUS. A licença deverá ser por tempo indeterminado acordando pagamento de percentual internacional (em torno de 3%) sobre as exportações do produto.

Na sequência da citada Lei, foi editado o Decreto nº 3.201/1999, que   “dispõe sobre a concessão, de ofício, de Licença Compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o Art. 71 da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996”. Assim, temos neste Decreto:

Art. 2º Poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória de patente, nos casos de emergência nacional ou interesse público, neste último caso somente para uso público não-comercial, desde que assim declarados pelo Poder Público, quando constatado que o titular da patente, diretamente ou por intermédio de licenciado, não atende a essas necessidades.

§1º Entende-se por emergência nacional o iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional.

§2º Consideram-se de interesse público os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País.

Na continuidade das negociações na OMC sobre o tema propriedade intelectual, patentes e outros, sobretudo em decorrência da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública (Quarta Conferência da OMC – 9 a 14 de novembro de 2001), o governo brasileiro editou o Decreto nº 4.830, de 04 de setembro de 2003, que  também dispõe sobre a concessão, de ofício, de Licença Compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o Art. 71 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996”. (CORREA,2005).

Esse Decreto de 2003 determina que:

Art. 2º Poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória de patente, nos casos de emergência nacional ou interesse público, neste último caso somente para uso público não-comercial, desde que assim declarados pelo Poder Público, quando constatado que o titular da patente, diretamente ou por intermédio de licenciado, não atende a essas necessidades.

[...]

Art. 9º A exploração da patente licenciada nos termos deste Decreto poderá ser realizada diretamente pela União ou por terceiros devidamente contratados ou conveniados, permanecendo impedida a reprodução do seu objeto para outros fins, sob pena de ser considerada como ilícita.

[...]

Art. 10  Nos casos em que não seja possível o atendimento às situações de emergência nacional ou interesse público com o produto colocado no mercado interno, ou se mostre inviável a fabricação do objeto da patente por terceiro, ou pela União, poderá esta realizar a importação do produto objeto da patente (BRASIL, 2003).

No mesmo caminho, o governo brasileiro, também em decorrência de negociações e acordos na OMC, neste caso acatando o Protocolo de Emenda ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio que foi adotado pela OMC, em 6 de dezembro de 2005, promulgou o Decreto nº 9.289, de 21 de fevereiro de 2018.

Neste Protocolo de Emenda de Acordo temos a abordagem de produtos farmacêuticos e seus ingredientes ativos, bem com a distinção entre “membro importador elegível”, como País-Membro de menor desenvolvimento, e “membro exportador”, significando uma possibilidade de um País-Membro utilizar o sistema para produzir ativos e exportá-los para um membro importador elegível. Contempla, no nosso interesse, que:

[...] na medida necessária para permitir que um produto farmacêutico produzido ou importado sob uma licença compulsória naquele Membro seja exportado para os mercados daqueles países em desenvolvimento, ou de menor desenvolvimento relativo, que sejam parte do acordo comercial regional e que igualmente enfrentam o problema de saúde em questão.

Esses problemas de saúde estão em pauta diante dos estados de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, e de pandemia.

Como demonstrado, o Acordo TRIPS, sobretudo após a Declaração de Doha, apresenta um contexto de possibilidade de produção/utilização de itens patenteados pelo instrumento de Licença Compulsória para contextos de emergência em Saúde Pública - contemplados neste universo de possibilidades, as epidemias. Da mesma forma, para além da necessidade em emergência, quando os valores financeiros que envolvem as possíveis aquisições se tornam tão vultuosos em decorrência da instalação do monopólio pela falta de concorrência/proteção patentária, a Licença Compulsória pode e deve ser instalada com sentido de preservar a economia nacional e evitar o colapso social de uma nação.

Não se trata de preservar a economia para gerar vantagens competitivas para um País, mas de assegurar emergencialmente a capacidade pública de preservação do bem maior representado pela vida. Trata-se também, para além de atender a nossa demanda e desafios internos, de ratificar nosso compromisso com a solidariedade internacional e dar continuidade à produção nacional pública de tecnologias e dos insumos e produtos necessários ao controle da pandemia em curso. Esses recursos devem ser compartilhados com o fundo internacional gerido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o melhor controle pandemia no planeta, repassando apenas os custos da produção pública de preservação do bem maior representado pela vida.

Foi assim no Brasil, em 2001, quando o Executivo Federal, com ações no Ministério da Saúde, ameaçou instituir Licença Compulsória para medicamentos para a epidemia de HIV/AIDS e foram negociados preços muito favoráveis para a aquisição frente a um único produtor e detentor de patente. Da mesma forma, em 2003, medicamentos para a mesma doença foram negociados pelo governo brasileiro com farmacêuticas visando preços compatíveis, mais reduzidos e o devido fornecimento para o SUS.

Para além da discussão de valores financeiros de produtos para a área da saúde, em especial para aqueles itens sem opção de permuta ou substituição, devem ser avaliados os contextos de atendimento às necessidades em saúde, que não são opção para os pacientes e sim uma necessidade para a prevenção, tratamento e recuperação da saúde. Acrescenta-se que não se trata de escolha e sim de “vida”, não se evidenciando por parte do paciente preferência pelo critério de modelo, tipo, mais moderno, mais leve, como para outros itens de consumo disponíveis.

Como ponto marcante neste cenário, vislumbram-se os vulneráveis, os menos favorecidos social e economicamente, demandantes de mais do que o contexto de saúde, educação, alimentação, emprego, moradia, condições sanitárias, entre outros. Em complemento, o que dizer das doenças raras e suas necessidades? O que dizer dos impactos para o Sistema Único de Saúde brasileiro que “abraça” e “acolhe” a todos? Mas, em especial, neste momento de pandemia da Covid-19, tem-se que refletir sobre todos esses aspectos com mais intensidade.

O Ministério da Saúde publicou em sua página, no dia 18 de maio, mais de 15 milhões de casos acumulados, mais de 75.000 casos novos e 2.513 óbitos nesse dia, em que chegávamos à marca de 439.050 óbitos acumulados, com ampla distribuição de casos e mortes em todas as regiões brasileiras (BRASIL, 2021).

O Boletim Matinal Covid-19, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), traz, também na data de 18 de maio uma comparação dos números brasileiros em relação aos dados dos outros países do mundo. Os dados globais eram de mais de 163 milhões de casos, cerca de 600.000 mil novos casos diários e mais de 3 milhões de mortos, dos quais 10.881 em um único dia, 17 de maio de 2021 (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2021).

Na mesma data, o Sistema CEP/CONEP de avaliação de protocolos de pesquisa, com ênfase na ética em pesquisa e na proteção do participante, publicou, em seu Boletim Ética em Pesquisa, o relatório semanal de número 67. Confeccionado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do CNS, o Boletim registrou o marcante número de 861 protocolos de pesquisa com foco na Covid-19 para todo o Brasil (BRASIL, 2021).

3. Notícias relacionadas à Licença Compulsória

Neste processo de contextualização, vale ressaltar as notícias e notas apresentadas abaixo:

I - O INPI, autarquia federal brasileira, criada em 1970, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que trata e controla a concessão de patentes no Brasil, publicou, em 10/02/2017, em sua página nota com o título “Emenda de TRIPS permite Licença Compulsória para exportar medicamentos.” O texto trata da possibilidade de emissão de Licença Compulsória, sobretudo para os medicamentos, em decorrência da Declaração de Doha, em especial para casos de necessidade pública. Traz com destaque a possibilidade de “uma Licença Compulsória especialmente adaptada para a exportação de medicamentos para países necessitados”.

II - Notícia na página do Itamaraty, publicada em primeiro de maio de 2019, traz:

O Comunicado Conjunto dos Presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, de 19/03/2019, indica que o Brasil começará a abrir mão de tratamento especial e diferenciado (TED) nas negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC). O anúncio não implica qualquer alteração ou redução da flexibilidade já existente no que respeita a certas regras dos acordos da OMC vigentes. Tal flexibilidade, que resultou de extensas negociações no passado e não será rediscutida, varia conforme os acordos e o grau de desenvolvimento de grupos de países.

III - Em notícia na página do Ministério das Relações Exteriores, publicada em 19 de março de 2021, cujo título é “Brasil busca ‘3ª via’ para impasse sobre quebra de patentes”, encontramos a referência à opção do Brasil em não participar da ação encabeçada pela Índia e pela África do Sul quanto a “moratória generalizada ao acordo que regula os direitos de propriedade intelectual (conhecido pela sigla Trips)”. Esta iniciativa, segundo o texto, conta ainda com o apoio de 55 países. O texto ainda traz:

Para o governo Bolsonaro, há gargalos mais importantes que têm freado ou impedido a vacinação em massa: falta de provisão de insumos farmacêuticos, limitações do parque produtivo, necessidade de capacitação técnica de número maior de países para propiciar escala à produção de vacinas.

No entendimento do embaixador Sarquis, enquanto não resolve esses pontos, a quebra de patentes pode desestimular os laboratórios em um processo natural: pesquisas em torno de atualizações sazonais das vacinas ou de uma segunda geração dos imunizantes - por exemplo, capazes de proteger contra novas cepas ou reduzindo algum efeito adverso (BRASIL, 2021).

IV - Em 09 de abril de 2021, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações emitiu uma Nota à Imprensa com o título: “Vacinas e patentes - Nota à Imprensa Conjunta do Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Economia, Ministério da Saúde e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações -  Brasil copatrocina iniciativa na OMC para ampliar a produção e a distribuição de vacinas”. O texto aborda que:

O Brasil copatrocinará, com Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia, iniciativa que defende o engajamento imediato da Organização Mundial do Comércio (OMC) nas negociações para a ampliação da produção e da distribuição de vacinas e de medicamentos que possam contribuir para a superação da pandemia da Covid-19. A iniciativa intitulada “Ampliando a Atuação da OMC nos Esforços Globais para a Produção e Distribuição de Vacinas e de Outros Produtos Médicos Contra a Covid-19” é convergente com as posições brasileiras históricas na matéria e com a busca por soluções responsáveis, transparentes e eficazes que o Brasil vem promovendo nos foros internacionais em resposta à pandemia (BRASIL, 2021).

E ainda que:

O Brasil entende que o Acordo TRIPS compreende adequado conjunto de incentivos à inovação e de flexibilidades consagradas na Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, inclusive à luz do princípio do interesse público, para enfrentar crises de saúde. O Brasil continuará a participar de todas as discussões na OMC sobre iniciativas para combater a pandemia, inclusive aquelas relacionadas ao sistema de propriedade intelectual.

É importante notar, finalmente, que todos os países-membros da OMC - o Brasil incluído - estão habilitados pelo Acordo TRIPS a decretar o licenciamento compulsório de patentes como forma de atender a imperativos de ordem pública, modalidade prevista na legislação nacional. A legislação brasileira está plenamente em linha com o Acordo de TRIPS e contém todos os dispositivos para estimular a inovação, a transferência de tecnologia e as variadas modalidades de acordos de licenciamento (BRASIL, 2021).

V - O Ministério das Relações Exteriores, em notícia de 19 de abril de 2021, com o título “Proposta na OMC sobre patentes”, traz que:

A flexibilização das patentes no Brasil já é possível, em caso de necessidade, por meio do licenciamento compulsório, que é autorizado pelo Acordo TRIPS desde o seu início, em 1995, e pela legislação brasileira, desde 1996. O Brasil foi um dos países que mais lutou por essa previsão e para que fosse vista como uma possibilidade real e não apenas teórica. Este foi, aliás, um dos objetivos da Declaração de Doha de 2001.

[...]

O Brasil vem buscando incentivar a cooperação entre diversas organizações internacionais, inclusive OMC e Organização Mundial da Saúde, no sentido da promoção de iniciativas pragmáticas e consensuais que resultem na efetiva ampliação da produção de vacinas em âmbito global (BRASIL, 2021).

VI - Em 07 de maio de 2021 foi noticiado que o Brasil passa a apoiar negociações para quebra de patentes de vacinas, que segundo o Governo Federal:

[...] além da suspensão de dispositivos do Acordo Trips para o combate à pandemia, o Brasil trabalhará pela implementação de uma proposta de “terceira via”, que envolve a cooperação entre países detentores de tecnologias para a produção de vacinas e o funcionamento de fábricas atualmente com capacidade ociosa em países em desenvolvimento. Em particular, o Brasil discutirá, em maior profundidade, com os Estados Unidos, sua nova posição e suas implicações práticas para facilitar o acesso a vacinas e a medicamentos no combate à covid-19 (AGÊNCIA BRASIL, 2021).

VII - No dia 12 de maio de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por maioria (8 votos contra 3), pelo cabimento da modulação dos efeitos da decisão tomada no dia 06 de maio, quando a Corte considerou inconstitucional o parágrafo único do artigo 40 da Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial - LPI), acabando com a extensão do prazo de patentes para além dos 20 anos fixados em lei. A maioria dos ministros (6 x 2) votou pela modulação com efeitos retroativos (ex tunc) para qualquer tecnologia da área de saúde (produtos e processos farmacêuticos e produtos hospitalares), confirmando decisão liminar anterior do ministro Dias Toffoli, relator do processo.

Tais acontecimentos demonstram que o sistema de patentes cria barreiras à própria pesquisa, ao bloquear cada vez mais o acesso aos próprios métodos e ferramentas de pesquisa. Esse sistema se tornou, assim, um dos grandes obstáculos à produção de medicamentos necessários à preservação da vida das populações. Superá-lo é uma antecipação possível de um futuro em que os serviços sociais essenciais não mais estarão sujeitos a princípios de lucro e mercado.

4. Aspectos econômicos do sistema de propriedade intelectual

As patentes, conforme já colocado, são um mecanismo criado para estimular a inovação e é comum no debate público o argumento que a flexibilização desses direitos poderia reduzir investimentos privados no setor farmacêutico e impactar a inovação. Evidências sugerem, no entanto, que o risco associado ao processo de inovação é em larga medida assumido pelo poder público. Em alguns casos, o investimento público inclusive supera o investimento privado na pesquisa e no desenvolvimento de novas tecnologias.

As vacinas contra a Covid-19 são um exemplo importante desse cenário. A Covishield, conhecida como vacina de Oxford, por exemplo, teve 97% do seu desenvolvimento financiado por recursos públicos ou filantrópicos. A predominância de recursos públicos é a realidade na maior parte das vacinas registradas ou em teste clínico de fase III no contexto da pandemia (CROSS et al., 2021).

Medicamentos e vacinas, em geral, que contém inovações radicais geralmente recebem recursos públicos especialmente nas fases iniciais do processo de pesquisa e desenvolvimento, nas etapas de pesquisa básica ou nos Testes Clínicos de Fase I. Essas são as etapas com maior risco para o investimento.

Conforme dados do INPI, 96% das patentes de medicamentos concedidas no Brasil entre 2000 e 2016 tiveram incidência do parágrafo único do artigo 40. Hoje, há no País cerca de 60 medicamentos com patentes estendidas em razão do dispositivo. A maior parte desses remédios são biofármacos (CONSULTOR JURÍDICO, 2021).

Um estudo do Grupo de Economia da Inovação, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentou que, entre 2014 e 2018, o Governo Federal gastou R$ 10,6 bilhões, ou cerca de R$ 1,9 bilhão ao ano, com apenas nove medicamentos que teriam a patente expirada entre 2010 e 2019, mas que tiveram prorrogações de até oito anos (PARANHOS; MERCADANTE; HASENCLEVER, 2020).

Deste modo, o Brasil está entre os países mais lentos na decisão de pedidos de patentes. O tempo médio que o INPI leva é de 14 anos, de forma que as patentes duram, em média, 24 anos. De acordo com dados do INPI informados ao STF, atualmente há um total de 8.837 pedidos de patentes aguardando concessão há mais de 10 anos. Ao todo, há 143.815 pedidos de patentes pendentes de decisão. Hoje existem 34 mil patentes em vigor que superam os 20 anos (BRASIL, 2021).

5. Conclusões

O Brasil já registrou mais de 15 milhões e meio de casos confirmados de Covid-19, com mais de 439.000 mortos. Já temos hospitais lotados, falta de leitos e medicamentos, recursos humanos da área de saúde exaustos e deficiência na produção de vacinas com insumos oriundos do exterior. Essa situação é agravada por diferenças no acesso à vacinação para as populações vulneráveis, com comorbidades, sem as devidas condições mínimas de moradia, alimentação e emprego que aguardam a vez de serem vacinadas, sem perspectivas para a volta à normalidade da vida, ou até, redução da vida miserável provocada.

A suspensão dos direitos à propriedade intelectual de vacinas, medicamentos e toda e qualquer tecnologia para a Covid-19 contribuirá significativamente para o acesso aos mesmos, amplamente distribuídas igualitariamente, sendo fundamental para alcançar a superação destas terríveis crises social, sanitária e econômica. As suspensões propostas facilitarão a reversão do ritmo extremamente lento da vacinação, situação que traz mais riscos para o surgimento de outras variantes, mais infecciosas, e que poderão diminuir a eficácia das atuais vacinas. Os produtos relacionados a uma pandemia devem ser considerados automaticamente licenciados, não podendo haver monopólio.

O empenho coletivo dos países é fundamental para superarmos esta questão. Destacamos que o Papa Francisco, que extrapola a condição de Líder da Religião Católica, se manifesta para toda a humanidade sobre a necessidade de se opor ao “vírus do individualismo” e defendeu que "um espírito de justiça nos mobilize para assegurar o acesso universal a vacinas e a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual. Isso reforça nossa necessidade de sinalizar a solidariedade internacional e de nos colocarmos como fornecedores em potencial de vacinas para um fundo multinacional, de gestão multilateral e focado em sociedades com vulnerabilidades. Nosso foco é a vida, sua preservação e promoção. E a Licença Compulsória é uma das ferramentas, que no momento, faz-se imperiosa e premente.

Destacamos que para se manter o acesso às tecnologias é fundamental retornar a Política do Complexo Industrial da Saúde, visto que as vacinas são apenas um dos itens; todos os demais medicamentos utilizados no tratamento devem ter acesso aos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) e aos excipientes, bem como instrumentos e equipamentos necessários para o desenvolvimento da produção.

Importante retomar o funcionamento do Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento, ampliado e com entidades e representantes com expertise na temática, de modo a contribuir para o compartilhamento de informações técnicas e ser um espaço de acúmulo e contrapontos a favor dos interesses sociais e das vidas.

Portanto, se faz necessário um movimento ativo em favor da soberania nacional para a área da saúde, de maneira tal que possamos garantir ciência e tecnologia capaz de fazer frente ao contexto de pandemia que se manifesta e se impõe, e mais, às necessidades que se apresentam para o desenvolvimento de produtos para as doenças que afligem a sociedade brasileira. No campo das patentes, especialmente aquelas destinadas aos tratamentos oncológicos e de doenças raras, mas não somente.

Se faz necessário ainda que tenhamos garantido o acesso à vacinas, medicamentos, equipamentos que pressupõe em primeiro lugar, liderança governamental, responsável e na defesa das vidas, com a garantia de um financiamento justo, sustentável e transparente do sistema público de saúde e da ciência; e, em segundo, contarmos com o poder legislativo para que, de fato, os interesses públicos sejam atendidos, em especial neste momento de grave situação de saúde pública, observando a necessidade de escuta permanente do controle social do SUS.

Referências

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BRASIL. Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1.999. Altera a Lei no 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9787.htm>. Acesso em: 18/05/2021.

BRASIL. 2.ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde e 147.ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde. Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde.  Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Politica_Portugues.pdf>. Acesso em: 18/05/2021.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução nº 352, de 2005 de 11 de agosto de 2005. Delibera sobre a emissão de licenças compulsórias dos medicamentos Efavirenz, Lopinavir e Tenofovir, bem como de outros anti-retrovirais patenteados e a fabricação local dos medicamentos. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_05.htm>.

BRASIL. Decreto nº 6.108, de 04 de maio de 2007. Concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não-comercial. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/decreto-6108-de-4-de-maio-de-2007>. Acesso em: 18/05/2021.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Recomendação nº 7, de 10 de março de 2017. Recomenda: Ao INPI que priorize a análise de pedido de patente do medicamento Sofosbuvir e, no resguardo dos interesses de Saúde Pública do Brasil, considere como relevantes os subsídios ao exame de patente apresentados por instituições públicas, representações da sociedade civil e por entes do setor produtivo privado nacional e, em assim fazendo, não conceda a patente pretendida do medicamento Sofosbuvir, visto que no momento já estão sendo realizados, em Farmanguinhos/Fiocruz, estudos de equivalência farmacêutica e de bioequivalência do medicamento. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes/2017/Reco007.pdf>. Acesso em: 18/05/2021.

BRASIL. Projeto de Lei nº 1.462/2020. Altera o art. 71 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, para tratar de licença compulsória nos casos de emergência nacional decorrentes de declaração de emergência de saúde pública de importância nacional ou de importância internacional. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01gjzoddhc0dag1kx4v47axfbm62485126.node0?codteor=1872758&filename=PL+1462/2020>. Acesso em: 18/05/2021.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Recomendação nº 67, de 03 de novembro de 2020. Recomenda a adoção de medidas que visam a garantia do acesso à vacinação enquanto estratégia de enfrentamento à pandemia da Covid-19. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/recomendacoes-2020/1442-recomendacao-n-067-de-03-de-novembro-de-2020>. Acesso em: 18/05/2021.

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BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de inconstitucionalidade 5.529 Distrito Federal. 2021.

 

 

Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica

 Conselho Nacional de Saúde

 



[1] Vandana Shiva (filósofa, física, ecofeminista e ativista ambiental indiana. Diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Déli, e uma das líderes e diretoras do Fórum Internacional Sobre a Globalização)

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