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mais sobre as comissões intersetoriais do CNS:
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Acessibilidade,
direitos, cidadania
Estes
3 temas se articulam através da pergunta: que modelo assistencial
é capaz de dar conta do acesso universal ao tratamento, da garantia
e promoção dos direitos de usuários e familiares,
e da construção permanente e quotidiana da cidadania ?
ACESSIBLILIDADE
O cuidado
em saúde mental está ao alcance daqueles que dele necessitam
? De uma maneira geral, não. Podemos estimar que 12 % da população
necessitam hoje de alguma forma de atendimento, e que ao longo da vida
¼ das pessoas vão precisar, de uma forma ou de outra,
de algum atendimento em saúde mental. Se considerarmos apenas
os "transtornos mentais severos e persistentes" (psicoses,
neuroses graves, deficiência mental acompanhada de problemas psicossociais
graves, demências que acarretam transtornos graves na autonomia
e participação na vida social) chegaremos a uma estimativa
de que 3% da população geral necessitam de um cuidado
contínuo e permanente, como aquele que é oferecido, por
exemplo, nos centros de atenção diária (CAPS e
NAPS). No Brasil, isto equivale a mais de 5 milhões de pessoas.
Devemos acrescentar à estimativa apresentada (3% da população
geral) um número muito elevado de pessoas com problemas graves
decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas (somente
em relação ao álcool, estima-se que, no Brasil,
4% da população necessitem de cuidado regular e contínuo).
Portanto, é um número muito elevado de pessoas, e uma
oferta muito baixa de serviços.
Além
de ser pouco eficaz, e de favorecer o isolamento e a segregação,
o modelo hospitalocêntrico é também uma das causas
do baixo acesso da população ao atendimento, porque concentra
os recursos financeiros (ainda hoje, 89% dos recursos do SUS para psiquiatria)
e atende um número pequeno de pacientes. Os leitos hospitalares
convencionais tendem a manter os pacientes internados por longos períodos
(mais da metade dos leitos ficam ocupados por pessoas internadas há
vários meses ou anos), e por isso participam pouco da oferta
efetiva de serviços.
No atendimento
extra-hospitalar e comunitário, temos a rede de CAPS, hoje cerca
de 285 serviços (outubro 2001), e os ambulatórios de saúde
mental. É necessário ampliar esta rede. Pensar a organização
da rede é uma das mais importantes tarefas desta Conferência.
É necessário garantir a implantação de serviços
comunitários de saúde mental, integrados aos programas
de atenção básica e à rede geral de serviços,
utilizando-se das estratégias mais adequadas a cada região/território,
no intuito de superar o modelo tradicional.
DIREITOS
O primeiro
direito a ser garantido é a acessibilidade. Quantas pessoas que
sofrem de graves problemas mentais não ficam abandonadas e invisíveis,
só sendo vistas quando alguma situação trágica
se apresenta em suas vidas ? Quantos suicídios aparentes e inaparentes
poderiam ser evitados se o direito ao tratamento fosse garantido ? A
criação de uma rede de atenção psicossocial
pública, territorial, eficaz, integrada é o primeiro direito
a ser conquistado.
A promulgação,
em 6 de abril de 2001, da lei 10.216 (resultante da proposta original
do deputado Paulo Delgado), coloca o tema dos direitos no centro do
debate da reforma psiquiátrica, e deve ser vista como um poderoso
instrumento para a conquista da cidadania dos usuários e familiares.
O germe da idéia de cidadania é justamente este: compartilhar
uma cidade, convivendo com outros cidadãos em busca do bem comum,
com direitos e deveres.
Depois
do direito ao tratamento, e dos direitos de cidadania mais gerais, algumas
situações específicas se apresentam no campo dos
direitos em saúde mental.
Vivemos
na "era dos direitos", título de um livro do pensador
italiano Norberto Bobbio o qual busca exprimir que, paradoxalmente,
depois de ver o mundo devastado pelos impérios militares e as
guerras, pela concentração da riqueza e a exploração,
e subjugado pela mercantilização sem limite de todas as
áreas da vida, a humanidade se vê em um impasse: ou se
volta vigorosamente para a construção de uma civilização
baseada na ética e nos direitos humanos, ou não haverá
futuro que se possa prever. Desta forma, o tema dos direitos é
central, não só para a reforma psiquiátrica, mas
para todas as políticas sociais.
Além
dos direitos clássicos - à liberdade, à participação
política, à escolha do credo religioso e pensamento, etc.
-, e dos direitos sociais - habitação, emprego, salário,
aposentadoria, atenção à saúde, educação,
etc. -, em nosso campo existem situações especiais que
devem ser consideradas.
Os portadores
de transtornos mentais severos podem estar submetidos a uma ordem particular
de direito, chamado estatuto da tutela. Por serem considerados menos
capazes de exercer os atos da vida civil, podem ser submetidos ao processo
de interdição ou curatela, através do qual perdem
parte de sua autonomia como cidadãos e são representados
por um curador, em geral pessoa de sua família. A interdição
destina-se, em tese, a proteger o paciente, mas pode muitas vezes significar
uma importante limitação de sua vida. Como a lei 10.216
baseia-se na afirmação dos direitos do paciente, em nome
dela se deve propor um mecanismo permanente de revisão dos processos
de interdição civil. Do mesmo modo, interdições
desnecessárias, que são fruto de exigências apenas
burocráticas do sistema de pensões (como o INSS), devem
ser extintas ou rigidamente regulamentadas, substituídas por
outros mecanismos de prova da incapacidade para o trabalho (a incapacidade
laborativa não pode ser confundida com a incapacidade absoluta
para a vida civil prevista no código civil).
No caso
da lei penal, as condições de funcionamento dos manicômios
judiciários (chamados hospitais de custódia e tratamento
psiquiátrico), para onde são encaminhados os pacientes
que cometem delitos, constituem atentados aos direitos humanos, e precisam
ser profundamente reestruturadas. O Código Penal, recentemente
revisto pelo Congresso, não mudou as normas sobre inimputabilidade
(ausência de responsabilidade penal) e periculosidade (potencialidade
de cometer novos delitos), específicas do paciente infrator,
mas a discussão sobre tal mudança deve prosseguir. A Lei
de Execuções Penais (que regula o cumprimento das penas
e das medidas de segurança) está em processo de revisão,
e constitui um instrumento estratégico possível para a
humanização (se tem sentido falar disso) dos manicômios
judiciários. No horizonte da reforma, deve estar colocada a superação
total desse tipo de estabelecimento.
O direito
ao trabalho também deve ser considerado de modo particular em
nosso campo. É necessário regular e estimular o trabalho
protegido, as cooperativas de trabalho, as empresas sociais, as proposições
de economia solidária, como forma de construção
positiva da integração social e da cidadania dos pacientes.
A implantação
das novas instituições e das novas práticas da
reforma psiquiátrica, a partir do final dos anos 80, transformou
completamente o modo de lidar com o tema dos direitos dos pacientes.
No modelo hospitalocêntrico, onde é visto como natural
e inevitável o estatuto da tutela (este mecanismo de proteção
legal que se baseia na noção da incapacidade civil e irresponsabilidade
penal do portador de transtornos mentais), a abordagem dos direitos
do paciente ficava extremamente limitada. Sendo visto como incapaz e
irresponsável - portanto, sem deveres diante da sociedade -,
ao paciente dificilmente se procurava oferecer alternativas para ser
sujeito e agente da busca por seus direitos. Os casos de curatela, de
problemas com a lei, de trabalho e outros, eram vistos como coisas distantes
do tratamento, que ficavam do lado de fora da instituição,
e eram no máximo designadas para acompanhamento pelo serviço
social. No trabalho dos serviços substitutivos, tais questões
fazem parte do dia-a-dia do tratamento, são importantes para
todos os profissionais envolvidos, e estão incluídas no
projeto terapêutico de cada paciente. O próprio tratamento
em saúde mental teve que se transformar, para dar conta destas
novas questões. Nos últimos anos diversas experiências
têm desenvolvido projetos nesta direção.
É
importante lembrar que a luta pela afirmação dos direitos
dos usuários deve dialogar permanentemente com as demais questões
presentes no debate sobre direitos e cidadania, e também com
outras lutas deste campo dos direitos humanos e sociais. Deve ser levada
em conta, neste debate, uma aparente contradição: quando
reinvindicamos direitos especiais para os usuários (por exemplo:
trabalho protegido, transporte gratuito para o acesso aos serviços,
apoio financeiro para egressos de longas internações ),
temos que nos defrontar com a possibilidade do reforço da condição
de tutelado, ou mesmo do poder do diagnóstico (psiquiátrico,
psicológico, social) como critério de inclusão
nos direitos especiais.
Destaca-se
também a urgente necessidade de aprofundar a temática
da internação voluntária e involuntária,
assim como das diversas questões que dizem respeito ao consentimento
informado. A regulamentação da internação
involuntária, determinada pela lei 10.216, já está
implantada em vários estados, com a participação
fundamental do Ministério Público, ao qual são
encaminhadas as notificações. É importante discutir
as conclusões do relatório do I Seminário Direito
à Saúde Mental, sobre a aplicação da lei
10.216, realizado em novembro de 2001, como atividade preparatória
da III Conferência. Deve existir um controle externo sobre todas
as internações: involuntárias, voluntárias
e compulsórias (feitas por ordem judicial).
Na questão
do álcool e drogas, é necessária uma profunda revisão
da lei que criminaliza o uso das substâncias, e cria situações
perversas de institucionalização forçada dos usuários
(metade da população dos hospitais de custódia
e tratamento psiquiátrico é constituída por usuários
de droga que cumprem medida de segurança ou aguardam perícia
psiquiátrica) e de violência por parte dos aparelhos policial
e judicial. A importação do modelo norte-americano dos
Tribunais de Drogas deve ser profundamente questionada, pois tende a
agravar as distorções e reafirmar um modelo repressivo
de atenção ao problema. Daí que, em relação
ao modelo assistencial, é importante afirmar a necessidade de
implantar-se rede de serviços comunitários, abertos, onde
a questão dos direitos do paciente que faz uso prejudicial de
drogas ilícitas possa ser uma das premissas do tratamento.
CIDADANIA
O tempo
todo estamos aqui falando de cidadania. Desde a redemocratização
do país, depois de 22 anos de regime militar, cidadania tornou-se
palavra-chave das políticas sociais, das novas instituições
democráticas definidas na Constituição de 1988
e, muito especialmente, do movimento da reforma psiquiátrica.
O tema da cidadania do louco, do estatuto especial da tutela, da construção
quotidiana de novos direitos e assunção de novos deveres,
está presente nos corações, mentes, gestos e textos
dos técnicos, pacientes e familiares do campo da reforma. A II
Conferência, de 1992, centrou-se neste conceito, cidadania. Passados
9 anos, com muita água das práticas e contradições
formando rios que atravessam os inúmeros novos serviços
e também as antigas instituições, em todo o país,
é tempo de fazer um balanço, analisar erros e acertos,
impasses e soluções, para seguir adiante. O desafio da
construção da cidadania não se coloca mais como
o de desbravar o lugar do louco na sociedade, mas de traçar grandes
e pequenas estratégias para a construção de uma
sociedade inclusiva, de fato democrática. O Brasil, país
com uma trágica história de agressão aos direitos,
cujo processo de construção social se deu com muita violência
e intolerância, e em cujo presente grita a todos os ouvidos a
tragédia da desigualdade social e da violência, é
uma terra, entretanto, que apresenta grandes possibilidades de buscar
com sucesso a construção de uma sociedade solidária,
tolerante, inclusiva, diversificada e igualitária, democrática.
Uma sociedade sem manicômios. O movimento da reforma psiquiátrica
é certamente um dos atores coletivos mais importantes na aventura
de construir esta utopia.
[TR:
Acessibilidade, Direitos, Cidadania. 29/09/01. Pedro Gabriel]
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